Essa pergunta é feita por quase todos aqueles que algum dia já se retiraram de uma sociedade empresarial. E é uma questão especialmente relevante para as operações de Fusões e Aquisições (M&A). Afinal, a responsabilidade de quem se retira da sociedade (do vendedor) é assunto essencial nos contratos de venda de empresa e já fica “precificada” nas negociações.
Por mais que um ex-sócio deixe de figurar no quadro societário, é comum o receio de que eventuais obrigações não cumpridas pela empresa sejam a ele direcionadas, mesmo que fato gerador não seja da sua época ou que o problema apareça no período em que não mais está presente.
Ele pode pensar: como fica o princípio da autonomia patrimonial, pelo qual a pessoa jurídica não se confunde com a pessoa de seu sócio/administrador, se esse princípio é “instrumento lícito de alocação e segregação de riscos” para “estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos[1]“?
O assunto é complexo. Tão complexo que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) é constantemente provocado a resolver questões que os Tribunais estaduais não conseguiram decidir de maneira uniforme entre si.
Recentemente, o STJ teve a oportunidade de julgar um caso envolvendo um fechamento irregular de empresa[2].
O fechamento de uma empresa é chamado de “irregular” quando as atividades se encerram sem que haja o pagamento de obrigações (especialmente tributos) e sem que se liquide e se dê baixa na pessoa jurídica nos órgãos competentes. Ou mesmo quando ela muda de endereço sem que comunique a administração pública.
A questão levada a julgamento[3] foi a seguinte: uma Empresa havia deixado de pagar débitos de ICMS relativos ao exercício em que a sócia “X” figurava como gerente. Essa sócia “X” retirou-se regularmente do quadro societário. Sua retirada ocorreu em momento posterior à ocorrência do fato gerador do ICMS, mas anterior à sua inscrição em dívida ativa. Depois da sua retirada, foi ajuizada execução fiscal buscando cobrar esses débitos. Nesse momento, verificou-se que a Empresa havia encerrado suas atividades após a retirada da sócia “X” dos quadros societários. Mas esse encerramento se deu de maneira irregular. Em razão desse fechamento irregular, poderia a ex-sócia “X” ter sido chamada para responder, pessoalmente, pela dívida da Empresa?
Em geral, as regras estabelecidas pelo STJ são as seguintes: a) o mero inadimplemento de obrigações tributárias não é capaz, por si só, de ocasionar o redirecionamento da dívida para o sócio[4]; e b) apenas o sócio que exerce função de gerência à época do fato gerador do débito tributário e, adicionalmente, que age com excesso de poderes, infração à lei (por exemplo, fraude, simulação, ilícitos análogos) ou ao contrato/estatuto social, pode responder pessoalmente pelo seu pagamento[5].
Como, então, deveria o caso acima ser decidido? A dívida deveria ser redirecionada à ex-sócia “X”, que estava à frente da Empresa à época do fato gerador, como administradora, mesmo que não tivesse praticado ato ilícito? O fechamento irregular da Empresa, ocorrido depois da retirada da ex-sócia X, torna esta responsável pelo tributo? Deveria o STJ modificar seu entendimento?
A solução dada pelo Tribunal, em acórdão publicado em 29/03/2022, foi a mais lógica possível: se, em primeiro lugar, o mero inadimplemento de tributo não é capaz, por si só, de fazer com que o pagamento do débito seja redirecionado ao sócio; se, em segundo, não há provas de que a ex-sócia “X” havia praticado qualquer ato ilícito quando da ocorrência do fato gerador; e, em terceiro, se a ex-sócia “X” não havia dado causa à dissolução irregular da Empresa, que ocorreu após sua retirada, ela não poderia ser responsável pela dívida em questão.
Logo, entendeu-se que não responde pela dívida o sócio que se afastou regularmente da empresa, e, quando da dissolução irregular, já não estava na administração. Mesmo que o tributo em aberto seja “da sua época”.
Dito de outra forma, a dívida deve recair sobre quem praticou o fato ensejador da responsabilidade[6], de modo que, para os casos em que restar configurado o fechamento irregular de empresa sem a devida liquidação[7] e sem que tenham sido adimplidos os respectivos débitos fiscais a ela relacionados, responderão pelo pagamento dos referidos débitos aqueles que deram causa ao seu fechamento irregular[8].
Daí surge a importância de zelar para que as atividades sejam exercidas em conformidade com a Lei durante todo o período de “vida” da empresa. O abandono das atividades em inobservância às disposições legais pode vir a ser a fonte de uma dor de cabeça futura para aqueles que um dia integraram a Sociedade.
Por: Marlos Nogueira e Jade Fioravante.
[1] Artigo 49-A do Código Civil.
[2] À luz do artigo 135 do Código Tributário Nacional (CTN).
[3] Recurso Especial 1.224.017-PR (2010/0201664-5)
[4] Enunciado 430 da Súmula STJ e REsp repetitivo 1.101.728/SP.
[5] Tema Repetitivo 97 do STJ.
[6] Tema Repetitivo 962 do STJ.
[7] Sem obediência aos ritos e formalidades previstas nos arts. 1.033 a 1.038 e arts. 1.102 a 1.112 do Código Civil (liquidação da sociedade com o pagamento dos credores em sua ordem de preferência) ou na forma da Lei 11.101/2005, no caso de falência.
[8] Recurso Especial repetitivo 1.371.128/RS (Tema 630).